Esperava que houvesse um divã ou, pelo menos, um sofá corrido em couro envernizado e surpreendeu-se com a cadeira reclinável baratucha e respectivo suporte para os pés. Instalou-se por instrução do doutor e entreteve-se a olhar os diplomas emoldurados na parede enquanto a ficha que preenchera na sala de espera era vista e revista pela frente e pelo verso.
— Então vamos lá — disse o doutor. Era o sinal esperado para começar a desbobinar o seu rosário de chagas. Não sabia bem por onde começar e, continuando sem saber depois de olhar a questão de vários ângulos, decidiu-se a começar pelo princípio.
— O meu problema são os Delfins, senhor doutor.
— Os Delfins?
— Precisamente. A banda. Aquela do Miguel Ângelo. Estavam muito na berra aqui há uns anos. Lembra-se?
— Vagamente. — Não lembrava ou talvez nunca o tivesse sabido. Preferia não admitir porque ficava mal a um doutor não saber coisas por mais remotas que fossem. E até parecia não ser esse o caso. — E de que forma é que o seu problema se relaciona com esses tais Delfins?
— Sonho com eles. Ou melhor. Não sonho realmente com eles. Tenho sonhos normais e variados, os mesmos que toda a gente terá ou assim calculo. O problema é que, de há uns tempos para cá, todos os meus sonhos têm banda sonora dos Delfins. Não estão presentes e não os vejo em parte alguma. É como se alguém pusesse a música a tocar. Será normal?
— Hmm… — era a melhor coisa a dizer para acompanhar um coçar de queixo intrigado. — Fale-me de um desses sonhos.
— É como lhe disse. Não têm nada de especial. Posso contar-lhe o desta noite. Estava numa praia tropical, o que só acontece em sonhos porque a única praia que frequento é a Costa da Caparica, e dividia a toalha com a minha bisavó que morreu tinha eu nove anos de idade. Lembro-me que o céu tinha uma cor vagamente alaranjada, o que era bizarro, mas não inteiramente desagradável. O que estragava tudo, mesmo com a bisavó a perguntar-me porque ainda não me casei e a oferecer-me couratos fritos de sanguessuga de uma salva de prata, era o raio da música sempre a tocar. “Sou Como Um Rio.” Nem sequer batia certo com o cenário. Mas mesmo que fosse “Um Lugar ao Sol” o efeito seria exactamente o mesmo. Até já tenho tido sonhos acompanhados por músicas dos Delfins que nem sequer existem.
— Compreendo — disse o doutor. Não compreendia. — E isto incomoda-o assim tanto?
— Se me incomoda? O doutor ponha-se na minha posição. Imagine-se a ter um sonho erótico. Quem não gosta de os ter, não é verdade? E imagine que as peripécias do sonho eram acompanhadas pelo “Ao Passar Um Navio”. Como diz a letra? “Ao passar um navio, fica o mar sempre igual.” Tem algum jeito?
— É realmente invulgar — considerou o doutor, começando a enfadar-se e desejando despachá-lo o mais depressa possível. — Acontece-lhe há muito?
— Começou numa noite em que estava sem sono e decidi pôr-me a vasculhar em caixotes de quinquilharia que guardo debaixo da cama. Encontrei uma cassete que alguém me gravou certa vez. Uma antiga namorada que acabou por casar com um engenheiro hidráulico com hálito permanente a cebola, mesmo quando não as comia. Disse-lhe que nunca tinha ouvido Delfins e ela achou que não podia ser e que tinha de ouvir porque era bestial. Gravou-me a maldita cassete e nunca a ouvi. Ora, nesta noite, mordeu-me o bicho da nostalgia e fiz-lhe a vontade depois destes anos todos. Pelos bons velhos tempos, vá. A meio da segunda canção (era o Saber a Mar), já dormia. E assim fiquei, muito depois de a cassete chegar ao fim e até ser acordado pelo sol nascente, com dor de costas e um zumbido estranho nos ouvidos. Na noite seguinte, tive o primeiro sonho.
O doutor olhou o relógio. Podia finalmente pô-lo a andar sem melindrar grandemente a deontologia.
— O seu caso é realmente muito interessante. — Não era. — Proponho que hoje fiquemos por aqui. Vou reflectir um pouco e, na próxima sessão, começaremos a discutir possíveis terapias.
Não houve próxima sessão porque percebeu que fora mais uma visita em vão e que também aquele especialista era incapaz de o ajudar. Sentiu-se destroçado no caminho para casa. Restavam-lhe poucas alternativas e nenhuma era agradável. Mas qualquer coisa seria preferível a tamanho sofrimento.
Semanas depois, numa altura em que começava a cheirar a Natal, ligou para um programa televisivo de consultório clínico e expôs o problema. De tal forma espantou o painel, que foi convidado a narrar o seu drama em directo, comovendo milhares de telespectadores. A receita foi repetida noutros programas e tornou-se presença assídua, sobretudo na programação da tarde. Havia mesmo quem o apontasse na rua, dizendo: “Lá vai o tipo que ouve os Trovante em sonhos!”
Seria quase inevitável que as coisas não evoluíssem como evoluíram. Um qualquer espírito iluminado da programação entendeu que seria boa ideia colocá-lo frente a frente com o próprio Miguel Ângelo e em pouco tempo se combinou tal emissão. Não foi tão dramático como a produção ansiara. Não eram realmente os músicos dos Delfins que o afectavam, mas apenas a música que produziam e apenas
R. Carreira, Junho, 2008
1 comentário:
salustio: diz ao R.Carreira que eu quero um autógrafo, porque gosto muito do que ele escreve.
beijos para ti e um especial para ele.
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